14 de fev. de 2008

Philipp Jacob Spenner - Pai do pietismo protestante

Título: Philipp Jakob Spenner – Pai do pietismo protestante Autor: Claus Schwambach Base: Neste ano de 2005 comemoramos os 300 anos da morte daquele que foi denominado de “Pai do Pietismo”, Philipp Jakob Spener. Rememorar tal data faz-se, em contexto brasileiro, de suma importância na atualidade. E isto, não apenas porque os impulsos de reforma eclesiástica propostos por Spener continuam a ser de extrema relevância para nossos dias. Mas também pelo fato de o movimento do Pietismo, do qual Spener é considerado “Pai”, ter se tornado no transcorrer de sua história em uma das correntes de espiritualidade, teologia e vitalidade missionária de maior impacto em toda a história da igreja cristã.O presente estudo se propõe a resgatar aspectos importantes da vida e da obra de Spener sob o pano de fundo de uma breve apresentação do Pietismo em seus traços mais gerais. Isto faz-se necessário pelo fato de o movimento do Pietismo protestante, embora presente em diferentes partes do globo até a atualidade, sempre de novo ter sido objeto de imagens controversas na história da pesquisa histórica a seu respeito. O presente estudo propõe-se a confrontar o leitor com algumas destas imagens, visando corrigir eventuais distorções e apresentar perspectivas mais amplas, de acordo com os resultados das pesquisas mais recentes. I. INTRODUÇÃO GERAL AO PIETISMO PROTESTANTEO movimento do Pietismo possui uma história de mais de 300 anos. No transcorrer deste período ele teve sempre de novo enfoques diferentes, razão pela qual não é possível fa-lar “do Pietismo” (sing.) como se fosse uma grandeza simples e fácil de definir, um bloco monolítico. Desde os primórdios de sua história uma série de pessoas, grupos e instituições afirmaram pertencer ao Pietismo. Cedo houve cisões, rupturas e separações dentro do próprio Pietismo, à exemplo da separação entre o Pietismo eclesiástico e o assim-chamado “Pietismo radical”, que se separou da igreja constituída. Ele não é, portanto, uma grandeza homogênea. Ainda assim o Pietismo clássico foi sempre um movimento eclesiástico, tendo nas pessoas de Philipp Jakob Spener (Frankfurt), August Hermann Franke (Halle) , Graf Ludwig von Zinzendorf e Johann Albrecht Bengel (Würtemberg) os seus representantes principais, em cuja vida e obra o Movimento de Avivamento do séc. 19 (alem. “Erweckungsbewegung”) pode, mais tarde, fundamentar-se. O Pietismo atual se apresenta de multiformes modalidades e com diferentes enfoques. Ele reúne as “Gemeinschaften“ (Movimentos de Comunhão) na tradição do “Altpietismus” (Pietismo Antigo), as “Gemeinschaften” (Movimentos de Comunhão) na tradição dos Movi-mentos de Avivamento e do Movimento de Gnadau, alianças supra-eclesiásticas e supra-denominacionais (por exemplo, a World Evangelical Alliance), comunidades religiosas (Dia-conisas de Aidlingen ou Adelshofen - Alemanha), igrejas livres etc. O Pietismo está presente, entre outros, na Europa, em muitos países asiáticos – na forma de novas igrejas surgidas do trabalho das entidades missionárias pietistas – e também no Brasil (cf., p. ex., o Movimento Encontrão e a Missão Evangélica União Cristã [MEUC] na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, além de estar presente em outras denominações evangélicas). 1. O que é “Pietismo”?Um dos grandes pesquisadores do Pietismo é Johannes Wallmann. Na busca por uma resposta à pergunta em epígrafe, ele recorre a um diálogo entre Otto von Bismarck e o Prínci-pe Wilhelm (Kaiser Wilhelm I), registrado na obra de Bismarck intitulada “Gedanken und E-rinnerungen” (Pensamentos e Recordações), de 1853. Neste diálogo entre Wilhelm e Bismark, o príncipe menciona ter conhecido alguém que diz ser um “pietista”, chamado General Gerla-ch. A partir disso, a seguinte conversa tem lugar:Bismarck: “O que a Vossa Alteza Real Eterna entende ser um pietista?”Wilhelm: “Uma pessoa que vive em hipocrisia religiosa para fazer carreira”.Bismarck: “Disto o Gerlach está longe... No uso lingüístico de hoje entende-se por pie-tista algo diferente, a saber, uma pessoa que crê de modo ortodoxo na revelação cristã e não faz mistérios em torno de sua fé...”.Wilhelm: “O que o Senhor entende por ortodoxo?”Bismarck: “Por exemplo alguém que crê seriamente que Jesus é filho de Deus e que ele morreu por nós como um sacrifício para o perdão dos nossos pecados. No momento eu não consigo formular de forma mais precisa, mas isto é a essência da diferença na questão da fé”.Wilhelm: “Mas quem é tão afastado de Deus, que não creria nisto?”Bismarck: “Se esta sua declaração fosse tornada pública, então até mesmo a Vossa Al-teza Real Eterna seria contada entre os pietistas”. Neste diálogo vemos, de forma exemplar, dois conceitos de Pietismo que nos encon-tram sempre de novo na história: O Príncipe Wilhelm defende o clichê do pietista como um hipócrita com aparência de piedade. Já Bismarck defende a compreensão de que o pietista é um cristão com fé ortodoxa, cuja fé está fundamentada firmemente na Bíblia. Outra definição do Pietismo muito difundida na pesquisa é aquela que foi defendida por Walter Nigg, na metade do séc. 20: “Há muitos preconceitos contra o Pietismo. Incrimina-se o mesmo por ser [uma espiritualidade] doce e melosa, usar uma linguagem de Canaã desna-tural e uma postura estreita e de fuga em relação aos bens culturais. A rejeição meticulosa das ‘coisas intermediárias’ [pensa-se aqui em coisas que em si não são pecado, mas que podem conduzir ao pecado, como dançar, ir ao teatro etc.] atesta o seu medo, que ele não venceu pela fé. O esquema de conversão unilateral com a compulsiva luta de arrependimento revela o de-sequilíbrio do movimento, que com sua ênfase no legalismo às vezes dá a impressão de ser um farisaísmo cristianizado. O orgulho espiritual, que muitos representantes possuem debaixo da máscara da humildade que apresentam publicamente contribuiu muito para a sua má fa-ma.” De modo geral, na pesquisa científica, muitas vezes prevalece lamentavelmente uma compreensão mais negativa da piedade pietista. Ainda assim, correções tem sido sugeridas, revelando não apenas as sombras, mas também as virtudes deste movimento vigoroso do Pro-testantismo. 2. Quem é um Pietista?Uma das formulações clássicas, agora positivas, do que vem a ser um pietista, encon-tra-se na seguinte frase, de J. Feller (1689), provavelmente a mais antiga das definições do que vem a ser um pietista: “Es ist jetzt stadtbekannt der Name der Pietisten. Was ist ein Pietist? Der Gottes Wort studiert und nach demselben auch ein heilig Leben führt.” Tradução: “Agora tornou-se conhecido por toda a cidade o nome dos Pietistas. O que é um Pietista? É alguém que estuda a Palavra de Deus e conduz uma vida santa de acordo com a mesma!”Esta designação surgiu a partir da observação das pessoas que viviam em torno de Phi-lipp Jakob Spener (1635-1705) e de August Hermann Franke (1663-1727). Spener, ao tomar conhecimento desta estrofe que Feller dedicou a um membro falecido do Collegium Philobi-blicum de Leipzig, nunca quis reconhecer esta designação. Contudo, a partir dali o uso desta designação se impôs, tanto junto aos defensores quanto junto aos críticos do Pietismo. Em-bora já antes de Spener (a partir de 1600) se deixem registrar uma série de manifestações de pessoas se manifestando contra o espírito frio da Ortodoxia protestante, é apenas a partir de Spener que o termo “Pietismo” passará a ter um significado epocal. No verso de Feller podemos identificar uma série de elementos que aparecerão sempre de novo mais tarde. Pietistas são pessoas que não se preocupam em crer na justificação dos pecadores, mas também se empenham por uma vida na santificação, na luta diária contra o pecado e na condução de uma vida consciente a partir da direção de Deus. Segundo Johann Arndt, autor de obras clássicas de edificação daquele período, o viver santo se mostra, acima de tudo, na dependência da força do Espírito Santo. Já o pietista reformado Gerhard Tersteegen escreveu em uma poesia: “Geht’s der Natur entgegen, so geht’s gerad und fein, die Fleisch und Sinnen pflegen, noch schlechte Pilger sein“. Tradução aproximada: „Se [a vida] vai contra a natureza, então ela é correta, aqueles que cultivam a carne e os sentidos, são maus peregrinos“. Neste sentido, a piedade pietista possui também como característica a negação de impulsos egoístas e carnais do ser humano, contra os quais é declarada uma luta. A característica mais importante é, contudo, a insistência na conversão e no novo nascimento. Além disso, transparece na definição de Feller outro elemento imprescindível da identidade pietista: o estudo e a leitura da bíblia como autoridade inquestionável sobre a vida pessoal. O empenho pela santificação conduziu, cedo, a formulação de linhas claras em questões éticas nas áreas do matrimônio, da educação, bem como da vida econômica e política. O pesquisador do Pietismo Martin Schmidt, procurando sintetizar as diversas tendências do Pietismo, ou seja, procurando resumir tanto o empenho pela vida íntima da pessoa com Deus como o empenho pela mudança da sociedade a partir da palavra de Deus, cunhou a seguinte fórmula, que poderia caracterizar bem o Pietismo: “Weltverwandlung durch Menschenverwandlung” (“Transformação do mundo por meio da transformação da pessoa”). Se queremos entender o Pietismo, é necessário observar que ele tem raízes principalmente na Reforma, se constituindo como reação à inércia prática da Ortodoxia e se desenvolvendo em uma série de etapas históricas.3. Raízes históricas do Pietismo 3.1. A ReformaPhilipp Jakob Spener, pastor e teólogo luterano, é visto oficialmente como o fundador do Pietismo. A partir de sua obra torna-se evidente que o Pietismo está fundamentado em cima da teologia da Reforma – no caso de Spener, luterana; mas em outros casos, também reformada. A justificação por graça e fé é também a base da confissão de fé de um pietista. No tempo em que Spener atuou em Frankfurt, ele recebeu a incumbência de escrever um comentário bíblico a partir dos escritos de Lutero. Estes estudos marcaram profundamente a sua vida, fazendo dele um profundo conhecedor de Lutero. Segundo a pesquisa, há dois elementos que o Pietismo deve a Spener: a) O contínuo elo do Pietismo com a igreja luterana; b) A fundamentação do Pietismo na Reforma de Martinho Lutero. Ao propor os collegia pietatis em sua obra clássica (Pia Desideria), Spener remete para o próprio Lutero, para o Prefácio da Missa Alemã de 1526. Lá Lutero fala que aqueles que querem ser cristãos sérios podem reunir-se em torno da palavra de Deus, para se fortalecerem mutuamente. Da mesma forma, o Prefácio de Lutero à Carta aos Romanos pode ser visto como a magna charta do Pietismo, pois lá Lutero afirma que a fé é uma obra divina em nós que mata o velho Adão e faz de nós novas criaturas pelo Espírito Santo: A fé é “uma obra divina em nós, que nos transforma e faz nascer de novo a partir de Deus [Jo 1,13] e mata o velho Adão, fazendo de nós pessoas bem diferentes no coração, na disposição, nos sentidos e em todas as forças [cf. Dt 6,5]”. 3.2. A místicaNo Pietismo registram-se, embora de forma mais periférica, influências da mística, em especial de Bernhard de Clairveaux, de Johannes Tauler, “Theologia Deutsch”. Determinados representantes do Pietismo se encontravam sob tais influências, nem todas elas em conformi-dade com a confissão da Reforma. Também estas contribuíram para que, de uma ou outra forma, o Pietismo se tornasse em algo “novo” no período da Ortodoxia protestante. 3.3. Impulsos do PuritanismoImpulsos decisivos o Pietismo também recebeu do Puritanismo inglês. A obra de John Bunyan e ainda de outros autores, fez com que muitos se voltassem a uma vida mais devota a Deus e mais empenhada pelo auto-conhecimento. Temas centrais desta vertente de piedade: a pecaminosidade do ser humano; a busca pela bem-aventurança eterna. Muitos cristãos sob influência do Puritanismo escrevem diários, nos quais registram as intervenções de Deus em suas vidas. 3.4. Impulsos de Johann Arndt Cristãos mais sérios avaliavam a piedade da Ortodoxia como sendo superficial. No intuito de aprofundar a piedade, houve um empenho pela recepção de tradições de piedade da mística, do humanismo e da literatura da escolástica medieval. Isto também se aplica a Johann Arndt (1555-1621) com a sua obra “Vier Büchern vom Wahren Christentum” (Trad.: “Qua-tro livros do verdadeiro cristianismo”) e o livro de orações intitulado “Paradiesgärtlein voller christlichen Tugenden” (Trad.: “Jardim paradisíaco cheio de virtudes cristãs”). Suas obras fo-ram amplamente divulgadas até o século XIX, cunhando gerações e sendo lidas por pessoas de todas as classes. Arndt procurava mostrar um cristianismo verificável, experimentável, interiorizado, que se dedica mais à ação e à vida cristãs do que ao mero saber da verdade. Arndt exige arrependimento, auto-negação e afastamento do mundo. Suas obras se estabele-ceram como contra-peso à aridez doutrinária do período da ortodoxia e serviu de fonte de ins-piração para muitos pais do Pietismo. 3.5. Principais representantes do Pietismo clássico O Pietismo em sua fase inicial, cujas raízes foram acima apresentadas, é denominado na pesquisa científica de Pietismo clássico, cujos principais representantes são:a)Philipp Jakob Spener (1635-1705), em Frankfurt;b)August Hermann Franke (1633-1727), em Halle;c)Johann Albrecht Bengel (1687-1752), em Württemberg;d)Nikolaus Ludwig Graf von Zinzendorf (1700-1760), em Herrnhut.3.6. Observação: A separação entre Pietismo radical e Pietismo eclesialPara quem estuda o Pietismo, é importante estar atento para a distinção entre o Pietismo eclesial e o Pietismo radical, separatista. O Pietismo eclesial se entende como movimento de reformas dentro da igreja constituída e tem por alvo atuar de forma inovadora e criativa dentro desta igreja. Representantes do Pietismo eclesial: Philipp J. Spener, Franke, Johann A. Bengel, Friedrich Oetinger, Gerhard Tersteegen e outros. Já o Pietismo radical possui forte crítica à igreja constituída, na qual enxerga a prostituta Babilônia. Defendem-se idéias que fogem da base da Reforma e constituem-se igrejas livres e/ou movimentos alternativos. Representantes são Johann Jakob Schütz, Johann Wilhelm Petersen e sua esposa Eleonora, Gottfried Arnold , alguns grupos de comunhão como o dos Neobatistas (alem. “Neutäufer”), o dos Inspirados e a “Comunidade de Sião”.O Pietismo radical tem as seguintes características: a) Forte recepção da mística medi-eval católica; b) Recepção do assim-chamado Böhmismo; c) Recepção de J. Arndt; d) Rece-ção do Puritanismo. Estes elementos, uma vez fundidos, culminam na radicalização dos an-seios de reforma do Pietismo. O casal Petersen desenvolveu ensinos em torno do milênio que culminavam com a convicção de que no fim, todos seriam salvos (universalismo). Gottfried Arnold acabou abrindo-se ao espiritualismo. Ele convocou para a “saída de Babel” (= igreja). O médico Johann Konrad Dippel ensinava que o sofrimento vicário de Cristo deveria ser substituído por uma transformação física do ser humano em um novo nascimento. Além disso, representantes do Pietismo radical defendiam uma ética ascética. Por outro lado, o grupo radical dos Labadistas se entendia como comunidade do amor, na qual se praticava o liber-tinismo sexual. Muitos grupos reivindicavam para si o fenômeno da inspiração, pregavam o juízo e compravam intrigas com instâncias eclesiásticas e políticas. Nos anos de 1726-1742 surgiu a Bíblia de Berleburg, uma tradução característica contendo ensinamentos do Pietismo radical. 4. O Movimento de Avivamento do séc. XIX – Nova expressão histórica do PietismoO Movimento de Avivamento do séc. XIX deve ser visto em íntima conexão com o Pietismo Clássico do Séc. XVIII, havendo uma relação de continuidade e correspondência entre ambos. Poderíamos definí-lo como uma segunda fase do Pietismo na história. Características comuns são a ênfase na conversão, a rejeição de uma teologia crítica à Bíblia e a promoção da missão interna e externa. Expressão direta deste Movimento de Avivamento é o Movimento de Comunhão (alem. “Gemeinschaftsbewegung”), que cultivava o ideal pietista da comunhão e enfocava a evangelização. O termo “evangelical”, muito utilizado na atualidade, revela influências que o Pietismo recebeu sempre de novo do contexto anglo-saxônico. O Evangelicalismo têm, portanto, raízes no Pietismo, mas distingue-se, por outro lado, deste, por assumir de forma muito mais marcante as influências anglo-saxônicas e, pos-teriormente, norte-americanas. Entretanto, a raiz comum entre ambas vertentes é inegável.Vale observar que o movimento pietista encetado por Spener chegou, logo após a sua morte, no ano de 1705, ao seu ponto culminante, sendo logo sufocado pelo Iluminismo e por uma teologia marcada pelo Racionalismo. Nas Universidades os representantes do Pietismo Clássico foram igualmente deixados de lado, sendo que predominou o ensino de uma teologia marcada pelo Racionalismo. O Movimento de Avivamento do séc. XIX é, desta forma, uma reação à situação da igreja naquela época. Seus representantes enfatizaram a pregação bíblica como contra-ponto em relação às tendências racionalistas nas faculdades teológicas e nas comunidades. Os principais temas das pregações eram a justificação do ser humano pecador pelo agir redentor de Deus na cruz de Jesus Cristo e a possibilidade de uma relação filial do crente com Deus a partir da aceitação do perdão concedido por Deus. Embora o Movimento de Avivamento não tenha atingido a Alemanha em sua totalidade, especialmente em Württemberg ele pode vingar, encontrando solo fértil nos grupos de comunhão do “Altpietismus”. Há, de certa forma, uma corrente de tradição entre Johann Albrecht Bengel (1687-1752), Friedrich Christoph Oetinger (1702-1782), Philipp Matthäus Hahn (1739-1790), Michael Hahn (1758-1819), Christian Gottlob Pregizer (1751-1824) e Ludwig Hofacker (1797-1827). Na primeira metade do séc. 19 surgiram em Württemberg di-versos grupos de comunhão, que se uniram em 1856 numa espécie de aliança (alem. “Ver-band”) com o nome “Die Konferenz” (Trad.: “A Conferência”). Outro nome de influência deste período foi Gerhard Tersteegen. Em 1848 foi fundada a “Evangelische Gesellschaft für Deutschland“ em Elberfeld. Na segunda metade do séc. XIX foram fundadas diversas entidades missionárias, que deixam re-conhecer as primeiras formas organizadas de evangelização e cultivo da vida em comunhão. Neste período, houve também a colaboração de instituições como a “Christentumsgesells-chaft” e a “Brüdergemeinde”, que fortaleceram os muitos grupos de comunhão existentes. Fa-to é que na segunda metade do séc. XIX havia em muitas regiões da Alemanha muitos grupos vivos de comunhão. Aqueles grupos de comunhão que haviam surgido no período clássico do Pietismo foram, desta forma, novamente fortalecidos e sobreviveram adiante. Além disso sur-giram muitos grupos novos. Grande destaque merece o surgimento de uma consciência pro-funda da missão do povo de Deus no mundo. “Estes círculos de comunhão relativamente pequenos formavam a vertente pietista que se abriu para influências metodistas e recebeu impulsos do Movimento de Oxford em 1875, unindo-se, então, a um movimento novo e cheio de força, que de forma geral é denominado de Movimento de Comunhão [alem. “Gemeinschaftsbewegung”]”. 4.1. O Movimento de Oxford e seus impulsos para o Movimento de Comunhão Na metade do séc. XIX surgiu, a partir dos EUA, um grande movimento de evangelização, sob fortes influências do evangelista Charles Grandison Finney. Ele experimentou uma conversão a partir de experiências visionárias e recebeu em seguida o batismo no Espírito. A partir desta experiência, ele se empenhou pela evangelização mundial, tendo por alvo a conversão daqueles que havia se distanciado da fé cristã e o fortalecimento dos cristãos. Ele desenvolveu uma doutrina da santificação que tinha por raiz influências do ideal de perfeição de John Wesley, segundo o qual o batismo com o Espírito deve seguir a conversão e o novo nascimento como uma espécie de etapa subseqüente e superior. Este batismo com o Espírito possibilita ao crente uma comunhão ininterrupta com Deus, mediante a qual a sua natureza pecaminosa seria totalmente destruída. Esta doutrina da santificação perfeccionista penetrou mais tarde também no Movimento de Comunhão, conduzindo a desenvolvimentos teológica- e praticamente problemáticos. O trabalho evangelístico de Charles Finney e de Dwight Lyman Moody nos EUA teve como resultado um grande movimento de santificação, que reuniu cristãos de muitas denominações. Pela atuação do fabricante Robert Pearsall Smith, que viajou em 1873 pela Inglaterra e na Suíça, convidando para programações evangelísticas, este movimento Norte-americano encontrou adesão em solo europeu. Em 1874 3000 pessoas se encontraram em Oxford. Após ouvirem a palavra por 10 dias receberam o Espírito Santo. Após isto Smith atuou na Alemanha, sendo recebido com grande entusiasmo. Suas reuniões em Stuttgart em 1875 foram grandemente visitadas por pietistas, sendo rejeitadas por outros tantos. A partir destas influências surge o Movimento de Santificação alemão, tendo por inici-adores Theodor Jellinghaus (1841-1917), Carl Heinrich Rappard (1837-1909) e Otto Stock-mayer (1838-1917). O Movimento de Comunhão existente foi fortemente influenciado por eles. Surgiram novos modos de viver a piedade e novas formas de vida em comunhão e de programações cristãs. Estes círculos avivados contribuíram para o grande pluralismo da soci-edade do séc. XIX. 4.2. Os primórdios do Movimento de Comunhão alemãoNa segunda metade do séc. XIX surgiram muitos grupos de comunhão na Alemanha, como resultado da atuação de diversos pregadores, todos sob forte influência de Jellinghaus, Rappard e Stockmayer. Elias Schrenk (1831-1913) tornou-se um dos maiores pregadores evangelísticos. Ele evangelizava no estilo do movimento norte-americano de evangelização e fundou em 1884 o “Deutscher Evangelisations-Verein”, sendo financiado por muitas pessoas nobres. O professor de teologia Theodor Christlieb (1833-1889) não mediu esforços para unir os diferentes grupos em um grupo maior de trabalho conjunto. Em 1880 surgiu o “Westdeutsche Zweig der Evangelischen Allianz“. Alvo principal de Christlieb era organizar a evangelização. Ele defendia o princípio de que os neoconvertidos deveriam se encontrar em grupos de comunhão, mas permanecer nas igrejas territoriais (alem. “Landeskirchen”). Ele exigia também a divisão das pessoas na comunidade em grupos de jovens, senhoras, senhores e a formação de corais. Em 1883 foi fundado em Berlim o “Christlicher Verein Junger Männer” (CVJM), existente até hoje. Este trabalho desenvolveu-se em moldes bem diferentes dos tradicionais: havia jornadas evangelísticas nas estradas e nas fábricas, desenvolvimento de culto infantil e trabalho com jovens em periferias, incluindo a fundação de diversas casas para o trabalho. A partir deste período o Movimento de Comunhão tomou como forma característica o trabalho com diferentes faixas etárias, permanecendo assim até hoje. O Movimento de Comunhão foi crescendo e se estruturando. No ano de 1888 todos os grupos de comunhão foram convidados para a primeira “Gnadauer Pfingstkonferenz” (Conferência de Pentecostes de Gnadau). Estas conferências passaram a ser regulares, tendo como tema sempre de novo o relacionamento dos grupos de comunhão com a igreja evangéli-ca, bem como o posicionamento do Movimento diante de Carismáticos e de novas tendências teológicas liberais. 4.3. O Movimento de Comunhão e o Movimento CarismáticoEm julho de 1907 o evangelista Heinrich Dallmeyer (1870-1925) convidou pessoas dos grupos de comunhão de Kassel para encontros com mulheres norueguesas que falavam em línguas. Nestas noites pessoas caíram em êxtase, em gritaria, orações, imposições de mãos e falavam em línguas, gerando muita confusão nestes círculos. O movimento carismático (alem. “Pfingstbewegung”) se espalhou pela Alemanha de forma muito rápida. Em 1908 foi realizada em Hamburgo a primeira conferência de Pentecostes (alemão “Erste Pfingstkonferenz”), na qual também o carismatismo esteve muito forte. Muitos grupos de comunhão por toda a Alemanha se abriram a tais influências, o que obrigou a direção do Movimento de Comunhão a tomar posição. No dia 15.9.1909 as principais lideranças do Movimento de Comunhão e da Aliança Evangélica foram convidados para diálogos em Berlim, tendo como resultado a Declaração de Berlim (alem. “Berliner Erklärung”). Neste documento, os participantes do Movimento de Comunhão foram conclamados a se distanciaram do Movimento Carismático, que foi definido como sendo um movimento marcado por um espírito “de baixo”. Os líderes do Movimento de Comunhão lamentavam os grandes tumultos provocados por carismáticos em suas fileiras em muitas regiões, expressaram suas reservas diante da doutrina do batismo com o Espírito Santo, do recebi-mento de um “coração puro” e de dons do Espírito como o falar em línguas. Constataram, da mesma forma, a falta de sobriedade e de humildade imperante em círculos carismáticos. A Declaração de Berlim culminou numa grande ruptura entre os participantes do Movimento de Comunhão, tendo a maioria se decidido contra o Movimento Carismático. Os representantes do Movimento Carismático fundaram seus próprios grupos de comunhão e reagiram com a Declaração de Mühlheim (alem. “Mühlheimer Erklärung”), afir-mando o caráter divino do Movimento Carismático. Desta forma, a cisão entre os dois movi-mentos estava definitivamente selada.4.4. O relacionamento do Movimento de Comunhão com a igreja evangélica após 1918Em 1918, com o final da atuação do Kaiser alemão, houve a separação entre igreja e esta-do na Alemanha. O Movimento de Comunhão teve, diante desta nova situação, que reagir mais uma vez em relação à igreja. Neste novo momento histórico, os líderes do Movimento de Comunhão optam com unanimidade em não fundar nova igreja livre, mas em continuar a atuar nos espaços da igreja evangélica constituída. Entendeu-se que dentro da igreja evan-gélica havia amplas possibilidades de atuação missionária. Como deficiências da igreja constatou-se a práxis do batismo infantil, bem como a visão de que a pregação da palavra e a ministração dos sacramentos estava vinculada muito forte com o ministério ordenado. A obrigação de que todos devam se congregar em paróquias tornou-se problema onde havia pastores liberais. A maioria dos grupos de comunhão pode aceitar um lema de Theodor Christlieb: “In der Kirche, soweit als möglich mit der Kirche, aber nicht unter der Kirche“. Por outro lado, sempre houve quem fundasse alguma igreja livre, por causa da cres-cente “mundanização” da igreja evangélica alemã. Já para os que optavam por ficar, estes o faziam a partir da compreensão de que o Movimento de Comunhão seria:a)Realização e promoção de vida em comunhão dos santos;b)A voz profética – a consciência – da igreja;c)A força evangelística da igreja;d)O movimento de oração por avivamento na igreja.A grande maioria dos grupos de comunhão (alem. “Gemeinschaften”) optou por este mo-delo, embora ele sempre tenha gerado tensões pessoais, locais e institucionais. No ano de 1923 foi assinada uma Declaração que regulamentava o relacionamento entre as “Landeskir-chen” e a “Gemeinschaft”. Lá fica assegurado que o Movimento de Comunhão quer pleitear promover a comunhão e a evangelização, não a separação da igreja, sempre buscando o bem desta última. O Movimento de Comunhão combateu todas as tentativas de separação da igre-ja. Optou-se por permanecer na igreja, não por causa de possíveis vantagens, mas por uma livre decisão e a partir de uma convicção interior. Em 1938 esta Declaração foi mais uma vez publicada e reforçada, tornando-se, de certa forma, em molde até os dias de hoje, para os mais diferentes acordos locais entre a igreja e os diferentes grupos de comunhão. Resumindo, o Movimento de Comunhão de Gnadau é, acima de tudo, um movimento que recebeu impulsos a partir de evangelizações e os institucionalizou. Seu alvo principal é o de chamar ao arrependimento e à conversão, cultivar a piedade pessoal a partir das Escrituras Sagradas. A centralidade da bíblia está em continuidade com o Pietismo clássico. Há forte rejeição do Método Histórico-Crítico na interpretação da Bíblia. A santificação é enfatizada. O engajamento na igreja e a crítica a seus defeitos são praticados, havendo sempre a opção de permanecer na igreja. Como movimento, há grande mobilidade que permite flexibilidade e criatividade para encontrar novas formas de trabalho. Em diferença para com o Pietismo clássico, o Movimento de Comunhão conhece muitas formas de vida em comunhão, em especial o trabalho com diferentes faixas etárias. Desta forma, o Neopietismo do Movimento de Comunhão deixou de enfatizar os collegia pietatis do Pietismo Clássico, para tornar-se em um movimento arrojado, marcado por diferentes formas e vertentes com grande diversidade. Destaque-se, neste contexto, que por toda a sua história o Pietismo continuou e continua sendo um movimento advindo e uma rica expressão concreta da Reforma protestante. II. PHILIPP JAKOB SPENER (1635-1705) – BIOGRAFIA E TEOLOGIA PIETISTA1. Principais momentos da biografia de SpenerPhilipp Jacob Spener é considerado o “Pai” do Pietismo, tendo realizado aquilo que muitos denominam de a mais importante reforma após a Reforma (alem. “Reformation nach der Reformation“ ). Ele exerceu influência notável praticamente sobre todas as ramificações do Pietismo posterior. Na história de seu desenvolvimento pessoal encontramos, de forma paradigmática, as principais tradições e influências que deram origem, ao longo da história posterior, ao que denominamos genericamente de Pietismo, conforme apresentado acima. Não sem razão um pesquisador do Pietismo chega a afirmar: “A história de surgimento do Pietis-mo é em grande medida a história da da vida de Philipp Jakob Spener”. Spener nasceu em 13.1.1635 em Rappoltsweiler e faleceu em 5.2.1705 em Berlim. Fi-lho de Jurista, foi educado junto aos Senhores de Rappoltstein. Como jovem foi um excelente conhecedor da teologia de Lutero, tendo sido influenciado pelos livros de Johann Arndt (Vier Bücher vom Wahren Christentum) e por diversos escritos de edificação do Puritanismo inglês, os quais enfatizavam a devoção a Deus, a meditação, a auto-análise e a santificação do domingo. Spener nunca visitou uma escola pública, mas buscou conhecimentos de forma autodidática e sob orientação de outros. Em especial leu e se aprofundou em compêndios de autoria de autores modernos como Justus Lipsius e Hugo Grotius. O seu nojo de Aristóteles, suas reservas diante da crença em bruxas e cometas, sua abertura às ciências naturais modernas, sua relativização das diferenças confessionais e a convicção de que é necessário que o cristão se debata com o ateísmo que despontava como fruto do Iluminismo – todas estas convicções surgiram no período que passou em Rappoltsweiler. Ao se dirigir em 1651 a Estrasburgo, as principais estruturas de seu pensar já estavam amadurecidas, sendo que sua piedade já podia, segundo o pesquisador Johannes Wallmann, ser considerada como a de um “pietista”: ele se mantinha afastado de coisas mundanas, dedicava o seu domingo ao studium pietatis lendo literatura de edificação, cantando e escrevendo meditações. Em 1653, aos 14 anos, tornou-se mestre em filosofia com uma dissertação em que se debate criticamente com o escrito “De cive” de Thomas Hobbes. Depois disto estudou história junto a Johann Heinrich Boecler. De 1654 até 1659 estudou teologia em Estrasburgo, na Faculdade Teológica local. Os professores (Johann Schmidt, Johann Conrad Dannhauer e Sebastian Schmidt) intermediaram sólidos fundamentos com base na Fórmula de Concórdia, sendo estes marcados teologicamente pela Ortodoxia luterana. De Sebastian Schmidt (1617-1696), autor de uma série de comentários biblicos, Spener aprendeu um método exegético sólido, atento ao contexto bíblico dos textos, que buscava liberdade de influências por demais dogmáticas, método este que preservou toda a sua vida e mais tarde ensinou aos seus alunos. Johann Dannhauer (1603-1666) foi seu professor de teologia sistemática. Spener se apropriou do sistema teológico deste professor, que polemizava contra os católico-romanos, os Calvinistas, os Antitrinitarianos e outros. Spener chegou a decorar partes inteiras da dogmática de Dannhauer, intitulada Hodosophia christiana. Mais tarde, como líder do Pietismo em formação, ele intermediou diversos ensinos da dogmática ortodoxa de seu mestre. Pouco antes de sua morte Spener declarou nunca ter se afastado do ensino luterano conforme havia aprendido com Dannhauer, com exceção da escatologia.Em 1659, após concluir o estudo da teologia, Spener foi estudar hebraística na Basiléi-a. Antes disso ele inclusive havia tomado aulas particulares de judeus que o instruíram no Talmude. Sua valorização da língua bíblica oriental original se refletirá, também em tempos posteriores, no Pietismo.Em 1660/61 ele fez uma viagem de estudos à Genova, onde conheceu Jean de Labadia. Ele ouviu muitas de suas pregações, conversou com Labadia pessoalmente e traduziu um de seus escritos. A piedade quietista e mística de Labadia o impressionou profundamente. Em 1662 Spener viajou à Stuttgart, em Württemberg, bem como à Tübingen. Nesta viagem ele conheceu um livro que o marcaria profundamente, a saber o livro “Wächterstimme aus dem verwüsteten Zion” (1661; Trad.: Arauto a partir da Sião destruída”), de Theophil Grossgebauer, que lamentava a decadência do cristianismo de seu tempo. O autor conclama os pastores a não descansarem, enquanto cada um dos membros de sua comunidade não expe-rimentassem o novo nascimento e a conversão. Esta obra representa uma espécie de estágio intermediário entre Ortodoxia e Pietismo. Grossgebauer exige uma luta de arrependimento de cada cristão, bem como que cada um saiba a data e a hora de sua conversão. Sem que Gross-gebauer abandone o batismo infantil, ele o enxerga como aliança que Deus estabelece com o ser humano, sendo que o novo nascimento somente acontece com a conversão. Há diversas provas na obra de Spener de que foi justamente a leitura desta obra que fez com que ele se conscientizasse da necessidade de mudanças na igreja de seu tempo, sendo que determinadas idéias de Pia desideria tiveram neste livro a sua inspiração. Diferente do que Grossgebauer, que havia negado o ensino da Ortodoxia luterana do novo nascimento pelo batismo, Spener, no ano de 1663 escreve suas Lectiones cursoriae, nas quais ele reforça o ensino ortodoxo do novo nascimento pelo batismo. Para conciliar a doutrina ortodoxa luterana com a insistência pietista na necessidade de novo nascimento e conversão, Spener recorre ao ensino da repetibi-lidade do novo nascimento, também encontrado na Fórmula de Concórdia. Para Spener, neste escrito, os cristãos nominais de seu tempo já foram uma vez renascidos, mas caíram da graça do batismo e tem necessidade de mais um novo nascimento. Desta forma Spener conciliou o Pietismo que começava a defender com o ensino da Ortodoxia luterana herdado. Será o Pie-tismo radical quem o criticará mais tarde impiedosamente por ter continuado a defender o en-sino ortodoxo. Em 1663 Spener atuou como livre pregador em Estrasburgo. Neste período realizou estudos genealógicos – Spener é conhecido como o fundador da Heráldica científica na Alemanha. Em 1664 ele escreve seu doutorado sobre um tema do Apocalipse de João e casa. No ano de 1666 é chamado para Frankfurt a.M. como pastor Sênior do “Predigerministerium” de Frankfurt. Os anos entre 1666 até 1686, que ele passou em Frankfurt a.M. foram os principais de sua vida, nos quais ocorreu a virada da Ortodoxia luterana para o Pietismo em sua vida. Du-rante os primeiros 10 anos deste período, ele ainda se empenhou em apoiar as muitas tentati-vas de reformas advindas da própria Ortodoxia luterana. Ele exigiu a santificação do domin-go, a proibição do comércio neste dia, cultivou severa disciplina eclesiástica e renovou o en-sino do catecismo. Apesar de tais esforços, ele desanimou e duvidou da efetividade dos mes-mos. Ele via que todos os empenhos somente conduziam a um cristianismo formalmente correto, mas ainda assim farisaico e descomprometido com o evangelho. Ele não conseguia vislumbrar o cristianismo verdadeiro apregoado por J. Arndt em seus livros. Ele via que o jeito ortodoxo de realizar mudanças por meio da exigência e do uso da autoridade eclesiástica não levava a mudanças autênticas, apenas a um tipo de disciplina social externa e farisaica. No dia 18 de julho de 1669 Spener pregou sobre Mt 5.20 e criticou o cristianismo morto e farisaico de seus dias, causando acolhida de um lado e crítica de outro lado. Em resposta às críticas ele remeteu para o prefácio de Lutero à carta aos Romanos, onde Lutero fala da fé viva, verdadeira e atuante – esta passagem tornou-se no locus classicus da compreensão pietista de fé. Neste período de desânimo, Spener entendeu que a causa de tudo se encontrava nos pastores de seu tempo, em uma teologia muito concentrada em controvérsias confessionais e na falta de prática da vida de fé. Durante alguns anos trocou correspondências com outros pastores acerca da necessidade de uma reforma da igreja e da formação teológica dos pastores. Em 1670 Spener criou um pequeno círculo de diálogo sobre questões de fé que logo foi chamado de collegium pietatis. Este círculo tornou-se logo conhecido por todos os arredo-res e fora de Frankfurt, tornando-se na célula de origem dos conventículos pietistas, tanto do Pietismo eclesial quanto do Pietismo radical, que se separou mais tarde da igreja. Conforme Spener, a idéia inicial nem foi dele, mas de alguns partícipes da comunidade que, cansados de companhias mundanas nos domingos, queriam cultivar comunhão espiritual. Duas vezes por semana – domingos e quartas-feiras – eles se reuniam e conversavam. No início reuniam-se apenas acadêmicos e patrícios. Depois trabalhadores e outros membros da comunidade. Mais tarde permitiu-se a presença de mulheres. Após 5 anos havia cerca de 50 participantes neste grupo e após 10 anos eram mais de 100 participantes. Lia-se trechos de livros edificantes, co-mo a Praxis pietatis de Lewis Bayly, o livro “Vorschmack göttlicher Güte”, de Joachim Lüt-kemann, trechos de dogmáticas ortodoxas etc. Depois de conversarem brevemente sobre o que foi lido, havia espaço para a discussão de outros temas. Controvérsias eram evitadas. Não se falava de pessoas ausentes. Hinos e oração iniciavam e terminavam estes encontros. De forma geral, Spener foi marcado pela convicção de que a Reforma de Lutero ainda não havia chegado à sua consumação e que tinha ficado encalhada no caminho. Ele via como sendo sua a tarefa de dar continuidade à obra do Reformador. Não por acaso os seus seguidores o chamaram de “Reformador após a Reforma”. É a partir desta convicção básica que devemos entender todo o seu programa de reformas para a igreja de seu tempo, que Spener condensou em seu escrito Pia Desideria. Trata-se de desejos piedosos para a igreja de seu tempo. Este escrito tornou-se também para os tempos posteriores no principal escrito programático do Pietismo clássico. Todos os ensinos do Pietismo posterior se encontram praticamente em germe nesta obra, com exceção da exigência de uma data definida para a conversão e a missão dos gentios, defendida por outros pietistas. A relevância histórica deste livro não pode ser subestimada. O próprio Spener afirmou diversas vezes durante sua vida que tudo o que pensava e ensinava ele já havia escrito em seu livro Pia Desideria.2. Linhas fundamentais da teologia pietista de Spener Aquele que se empenha em realizar uma abordagem dos enfoques centrais da teologia pietista de Spener vai cedo constatar que sua teologia não foi, nem de longe ainda objeto de exploração suficiente pela pesquisa. Além disso, é de suma importância lembrar que muitos dos posicionamentos de Spener, como por exemplo, seu pensamento sobre o Catolicismo ou sobre o Socinianismo, não são tipicamente pietistas, mas comuns ao Protestantismo da época. Como já sua biografia o apontou, é sempre necessário levar em conta que ele se considerava e era um teólogo ortodoxo luterano. As linhas a serem destacadas na seqüência perfazem, portanto, mais o enfoque tipicamente pietista que encontramos em Spener. Trata-se de aspectos que não são encontrados de forma tão evidente em sua obra Pia desideria, que será abordada de modo mais detalhado abaixo, mas que despontam em suas demais obras.Em primeiro lugar, destaque-se que Spener não era um teólogo acadêmico e que não deixou um sistema teológico fechado como legado. Embora tivesse reservas diante da filo-sofia e da metafísica Aristotélicas e fosse cético para com a filosofia moderna de Descartes, ele não era cego diante da importância crescente da física e da matemática, sendo que prezava a filosofia prática de Hugo Grotius. A filologia das línguas bíblicas, contudo, era considerada por ele como o mais importante segmento da filosofia da época para os teólogos. Em relação ao conjunto das disciplinas teológicas, Spener colocava a teologia bíblica ou exegética no ápice, considerando-a como o princípio de toda a teologia. Importava que os teólogos entrassem em contato com a realidade do agir divino pelas Escrituras, e não tivessem apenas um contato intelectual com as mesmas. Pode-se dizer que a concentração bíblica da teologia do Pietismo teve nesta postura impulsos decisivos. Da mesma forma, pode-se esclarecer a partir deste ponto a tendência pietista de não partilhar do criticismo bíblico da época. Nominalmente Spener encontrava-se em consonância com a tradição ortodoxa luterana. Mas de fato, em seus escritos, ele questionava fortemente algumas práticas da teologia dogmática ortodoxa. Criticava principalmente o espírito polêmico da mesma, afirmando que a polêmica doutrinária, embora não devesse ser rejeitada, deveria ser deixada para os especialistas. Spener valorizou muito a ética, que colocava ao lado da dogmática. Ele procurou valorizar a homilética, rejeitando, porém, uma retórica rebuscada e prédicas marcadas por uma intelectualidade estéril. De certa forma, enfatizou, também, uma teologia mística, tendo aprendido muito de Johann Arndt.As três maiores autoridades teológicas para Spener eram o dogmático Dannhauer, J. Arndt e M. Lutero. Como aluno fiel de Dannhauer, Spener se conservou conscientemente na tradição da teologia ortodoxa luterana. Na maioria dos tópicos que ensinava, ele permaneceu extremamente fiel a esta dogmática, havendo um desvio evidente, contudo, na escatologia. Quanto ao uso que fazia de Lutero, vale ressaltar que os ensinos do reformador não lhe servi-am para fundamentar a doutrina ortodoxa herdada, mas sim, justamente para articular os novos enfoques que procurava apresentar. Uma série de intenções práticas de Lutero passaram por uma recepção, havendo contudo, também modificações na doutrina da justificação. “Com sua recepção de Lutero Spener não foi apenas aluno, mas um parceiro do Reformador”. De forma geral, Spener procurou estar em continuidade com a teologia herdada, mas também e simultaneamente corrigir as suas deficiências. Spener não fundou uma escola teológica. Con-tudo, suas obras serviram de forte inspiração para as gerações posteriores do Pietismo.Uma das insistências de Spener era a exigência de simplificar a teologia, deixando de lado as muitas complicações do material dogmático. Argumentava, por isso, com freqüência, a partir da própria teologia bíblica. “No centro da teologia deveria estar a obra salvadora de Deus em Cristo em sua relevância para o ser humano, sua salvação e sua renovação”. Spener posicionava-se contra a distinção iluminista entre teologia e fé, bem como contra o ateismo prático que registrava em sua época. Por outro lado, partilhava com a nova época uma liberdade maior do cristão em relação aos ensinos dogmáticos herdados do passado, em especial nas questões que considerava periféricas à fé. “... o teólogo Spener já se encontrava, [com estes enfoques] na transição para a época pós-ortodoxa, na qual a subjetividade piedosa e a moralidade individual ganhavam peso em relação à doutrina objetiva. Seria contudo, apressado, ver neste desenvolvimento [em Spener] apenas um precursor do Iluminismo, como o mostra a continuidade da história do Pietismo, na qual este logo figurou como um oponente do Iluminismo ”. O centro da teologia de Spener é, como na Ortodoxia, a ordem salvífica estabelecida por Deus para o ser humano. A obra de Deus consiste em restaurar a sua imagem no ser hu-mano, que foi perdida com a queda. Embora tenham permanecido no ser humano um conhecimento de Deus natural e manifestações da consciência, ninguém consegue sair da condição de pecado por si mesmo. A primeira parte da ordem salvífica (lat. “ordo salutis”) reside no novo nascimento. Ao novo nascimento pertencem o surgimento da fé, a justificação – entendida como imputação da justiça de Cristo –, a aceitação como filho de Deus e a criação do novo ser humano. O despertar da fé Spener atribuía ao novo nascimento. Tal despertar ocorre pela atuação conjunta da palavra e do Espírito de Deus. A palavra é mero meio externo do agir do Espírito, cuja atuação recebe importância fundamental em Spener. Ele conhece inclusive um agir preparador e precursor do Espírito, que antecede a recepção da palavra de Deus pelo ser humano. Segundo Brecht, temos aqui indícios do espiritualismo desta teologia, pois o agir do Espírito pode aparecer dissociado dos meios externos da graça. O ser humano participa de algum modo do inicio da salvação. Ele precisa dar espaço para o agir do Espírito e obedecer a Deus. Sem tal cooperação, que na ótica da Ortodoxia Luterana se torna ques-tionável, o novo nascimento não acontece. Em sua compreensão da palavra de Deus, Spener distingue entre lei e evangelho. A lei promove o reconhecimento do pecado e temor, sendo, porém, apenas um preparo para a aco-lhida da semente do evangelho. Por isso, Spener estava pouco interessado na pregação da lei.A justificação é exclusivamente ação pontual de Deus, perdão dos pecados e imputa-ção da justiça de Cristo. Ela é recebida unicamente pela fé, não por obras. Spener conservou o modelo da justificação na compreensão de P. Melanchthon. A justificação como centro do novo nascimento não é um processo, mas um evento resultante do agir de Deus, que faz da pessoa um cristão. A nova criação acompanha a justificação, possibilitando a pessoa a fazer o bem. Spener enfatiza mais o efeito da justificação no crente do que o tema do consolo advindo do perdão. Para Spener, é possível que alguém caia do novo nascimento, tendo que retornar ao mesmo pela conversão. Seguindo seu mestre Dannhauer, Spener diferenciou entre novo nascimento e renovação enquanto crescimento na fé, exercício da piedade e busca de plenitude pelo cristão. O crescimento, este sim, era visto como um processo de santificação que durava a vida toda. O objetivo da renovação era a união com Deus (2 Pd 1.4), permanecendo a diferença qualitativa entre Deus e ser humano. Os meios do crescimento são o exercitar constante na palavra e nos sacramentos, na crucificação e na provação, na oração no afastamento do mundo. Spener focava seus interesses de modo especial no processo de aperfeiçoamento dos santos e na práxis piedosa destes. O centro de seu programa de Reforma reside justamente na renovação do cristão e da vida cristã. À grosso modo, se subtrairmos que Spener via uma determinada cooperação entre Deus e ser humano no despertar da fé, podemos afirmar que ele permanece na doutrina da justificação somente pela graça e pela fé. Assim como o batismo, a justificação é vista por Spener como constante consolo para o renascido. Contudo, também na realização da vida cristã Spener vislumbrava alguma cooperação entre ser humano e Deus, havendo, também neste ponto, tensões com a doutrina da justificação luterana. A exigência de conversão urgente podia tanger a graça universal. O pecado restante no crente renascido acabava sendo declarado como fraqueza da pessoa. Renascidos deveriam seguir rigorosamente os preceitos éticos. Spener acreditava que o crescimento na santificação pudesse ser identificado, embora tivesse se oposto a um perfeccionismo radical. Os renascidos devem viver em comunhão, buscar as coisas da nova vida e se distanciar do mundo.Uma porção considerável dos escritos de Spener ocupa-se com a ética. Isto resultava de seu interesse nos frutos da fé, bem como na renovação da vida cristã. O principal endereço da ética de Spener são os renascidos. Central para Spener é a normatividade do ensino bíblico também em relação à ética. A recepção das normas éticas advindas da Escritura acontece, a-lém de na pregação, no contexto da leitura bíblica pessoal. A norma não é entendida tanto como lei, mas sim como orientação evangélica, espelho e regra para a edificação do crente. Spener fala da postura e dos deveres do renascidos. Os deveres evangélicos consistem em não impedir a conversão, conservar o novo nascimento e promover a renovação da vida na prática da piedade. O valor das coisas deve ser avaliado pela medida em que estas promovem o crescimento da vida espiritual. O renascido é alguém que procura orientar sua vida na palavra de Deus e se afastar das coisas mundanas. As assim-chamadas “questões intermediárias”, como prazeres, luxo, comer, beber, fumar, ir ao teatro ou participar de procissões são vistas, via de regra, mais de forma negativa, embora Spener também tenha articulado muitas vezes, diante de pessoas escrupulosas, estes assuntos de forma bem mais diferenciada. Há momentos em que é possível constatar um rigorismo moral em Spener. A tendência de afastar-se do mundo levou, em parte, a uma postura de fuga da sociedade, para buscar refúgio apenas na comunhão dos santos. Ainda assim, a separação do mundo é, para Spener, apenas relativa. Pois justamente o amor ao próximo leva o cristão a ir em direção a outros. O trabalho secular era visto, bem de acordo com a tradição luterana, como lugar em que o cristão exerce a sua vocação. Ou seja: apesar do forte enfoque na piedade não-mundana, Spener soube transmitir que a sociedade é um espaço de ação construtiva do cristão. A ética dos renascidos é, para Spener, em suma, uma conseqüência do agir do Espírito Santo nestes. Lugar central na teologia e na ética de Spener possui o tema da obediência a Deus, que deve se manifestar concretamente na fé em Cristo e no amor para com o próximo. Quem ama o próximo, estará principalmente preocupado com a salvação do mesmo. O cristão deve obe-decer a ordem divina mediante a observância dos mandamentos, a direção do Espírito Santo, a sensibilidade para com a própria consciência. A postura ética que Spener defendia fez com que ele fosse procurado por muitos como conselheiro pastoral. Seus conselhos pastorais são caracterizados pelo fato de ele pesar conscienciosamente entre a norma e a situação, sendo que na maioria dos casos ele privilegiava decisões equilibradas, que primavam por fazer jus às diversas dimensões dos problemas a ele apresentados. A igreja cristã era, para Spener, a comunhão dos renascidos, que se encontram à cami-nho da renovação de vida. Estes estão cercados por uma igreja externa, composta por aqueles que não são verdadeiramente renascidos. Os pastores ou obreiros ordenados da igreja devem ser pessoas renascidas, marcadas pelo agir do Espírito Santo. A pregação, a catequese, a poi-mênica e a disciplina eclesiástica tem por alvo maior servir para a edificação da comunidade. Nos collegia pietatis (ecclesiola in ecclesia) são os crentes mesmos que tomam a palavra, de acordo com o sacerdócio geral de todos os crentes. Spener defendeu a liberdade dos leigos perante tentativas clericais de melindrar a expressão de fé e de piedade destes. Spener não a-bria mão de falar da grande igreja, mas concentrou seus esforços em um cerne piedoso desta, ao qual procurava dedicar-se de forma mais intensa. Spener esperava que seria a partir deste grupo de renascidos que aconteceria a renovação da igreja. Na escatologia, Spener esperava por dias melhores sobre a face da terra. Ele esperava um período intra-histórico, no qual haveria consolo e renovação para a igreja tentada, bem como a queda da Babel romana e a conversão dos judeus. Seu otimismo em relação às refor-mas da igreja era nutrido, de forma muito evidente, nesta esperança. Se olharmos para a contribuição de Spener como um todo, podemos dizer que sua teologia, seu programa de reformas (collegia pietatis) e a reforma do estudo da teologia por ele propostos “conduziram para que o Pietismo luterano alemão ... recebesse conturas mais claramente definidas do que até então, que puderam ser desenvolvidas adiante pelas gerações que o sucederam”. Justamente este programa de reformas, formulado em seu escrito Pia Desideria, merece uma abordagem mais aprofundada.III. PIA DESIDERIA – PROGRAMA DE REFORMA ECLESIÁSTICA DE SPENER1. Aspectos históricos a serem consideradosPor que Spener desejou reformas tão profundas para a igreja de seus tempos? Algumas razões encontramos na própria história da época.a) A confrontação da igreja evangélica com o catolicismo romano (Contra-Reforma) fez com que os teólogos evangélicos se concentrassem em disputas teológicas em torno da orto-doxia da fé cristã. O interesse maior estava em defender a fé evangélica diante das heresias católicas. Havia desleixo da vida espiritual e muitos abusos morais, além de mal-atendimento das comunidades. Isto fez com que a vida espiritual das comunidades fosse desleixada, sur-gindo profundos anseios de mais vida espiritual nas mesmas. Que havia uma profunda sede por espiritualidade, o atestam os muitos livros de meditações e orações publicados naqueles tempos. Para preencher esta lacuna, houve forte recepção de literatura advinda de escritores místicos em muitos lugares.b) A Guerra dos 30 anos tinha arruinado grandes partes do território europeu economica- e moralmente, deixando inclusive as igrejas em situações catastrofais. Já antes de Spener houve diversas tentativas de enfatizar mais a espiritualidade e a piedade nas comunidades, mas sem grande êxito. Spener não inventou idéias totalmente novas, mas empenhou-se para que estes esforços viessem a tornar-se realidade. Para fazer frente à miséria pública e espiritual, Spener investiu acima de tudo nos próprios pastores, tentando conquistá-los para suas idéias de reforma. Com seu livro Pia desideria ele tinha a intenção de dirigir-se às pessoas influentes na igreja e nas faculdades teológicas. A raiz de todos os males Spener vislumbrava na incredulidade que imperava entre os próprios pastores. Os males das comunidades tinham suas origens nas deficiências teológicas e morais dos mesmos, bem como em sua falta de conhecimento bíblico-teológico e de experiência prático-comunitária. A forte crítica eclesiástica que Spener faz na qualidade de Pastor pode ser entendida como uma espécie de auto-crítica advinda do seio da própria igreja. Ele teve a sensibilidade de acolher as impressões de muitas pessoas de seu tempo e de formulá-las de forma crítica, mas pró-ativa e construtiva. Ao invés de juntar-se aos que despendiam esforços para separar-se da igreja, Spener tinha a intenção de reformá-la, conduzindo a reforma de Lutero à sua consumação. Não é a fuga da igreja que resolverá os problemas, mas o engajamento ativo de todos os crentes a partir dos impulsos advindos do próprio evangelho de Jesus Cristo. O livro Pia desideria é, portanto, o resumo de suas propostas.2. As propostas de Pia desideria O livro “Pia desideria oder Hertzliches Verlangen nach gottgefälliger Besserung der wahren Evangelischen Kirche“ mostra uma divisão tríplice bem clara. Primeiro vem uma diagnose da situação deteriorada da igreja. Segue uma prognose de uma melhora futura, acompanhada, por fim, de uma descrição detalhada dos meios para realizar melhorias na vida da igreja. Neste livro encontramos as seguintes propostas concretas (meios) para a renova-ção da vida na igreja: 1.A palavra de Deus deve ser pregada mais ricamente – uso mais extensivo das Escrituras.2.O sacerdócio geral de todos os crentes deve ser fomentado e exercitado.3.Prática e conhecimento do cristianismo.4.Regras sobre como portar-se em discussões religiosas.5.Reforma das escolas e universidades.6.Pregação e Edificação: Direcionamento da pregação para um enfoque missionário e poimênico, ao invés de grande pompa teológica.Em relação às duas primeiras reformas propostas, Spener remete para o próprio Lutero. Já em relação às demais, ele remete para Johann Arndt. Contudo, ele via que os pensamentos de Arndt tinham respaldo em Lutero. Por esta razão, depois que escreveu Pia desideria, Spener sempre mencionou que seus principais mestres eram Lutero e Arndt. A remissão à Lutero tornou-se característica também para o Pietismo posterior. Apesar deste recurso a Lutero, a Arndt e a pensadores ortodoxos, há dois pontos em que Pia desideria vai além da tradição luterana: a) A sugestão de se criarem os collegia pietatis conforme o modelo encontrado em 1 Co 14; b) a “esperança de tempos melhores”.Na pesquisa científica, estas propostas de reforma de Spener são avaliadas de diferen-tes formas. Para alguns, Spener não ensinou nada de novo, mas apenas formulou de forma cla-ra e pregnante os anseios de muitos que o antecederam (assim M. Schmidt). Novo teria sido apenas o enfoque incomum do novo nascimento, que Spener teria herdado do espiritualismo místico, fazendo com que a doutrina da justificação fosse expulsa para a periferia do seu ensi-no. A pesquisa recente contestou esta interpretação da obra de Spener. Ela vê a grande novidade de Spener na idéia da reunião dos piedosos (collegium pietatis) e na esperança quiliástica (i. é, relativa ao milênio) de tempos melhores para a igreja. Estes pensamentos ainda não existiam na Ortodoxia Luterana, por exemplo, em J. Arndt. É por esta razão que Spener é considerado, e com razão, o verdadeiro Pai do Pietismo. A referida esperança de dias melhores para a igreja, que caracteriza o Pietismo, Spener articula na parte intermediária de seu livro. Ele fundamenta suas esperanças futuras em promessas bíblicas sobre a conversão dos judeus (Rm 11.25s; Hs 3.4s) e a queda da Roma papista (Ap 18 e 19). Segundo Spener, o cumprimento definitivo destas profecias ainda não havia ocorrido. Se viessem a ocorrer, então era de se esperar que a igreja teria dias melhores do que aqueles em que vivia. Todo empenho pelas mudanças e pelas melhoras na igreja deveria acontecer com base em tais promessas dadas por Deus. Com isto, Spener se distancia do pensamento da Reforma e da Ortodoxia, segundo as quais os tempos do fim estariam ocorrendo no presente. Spener entendia que antes do juízo final ainda deveria ser esperado o estabelecimento de um reino maravilhoso de Cristo sobre a terra. Spener reavivou assim o Quiliasmo, que havia sido banido pela Ortodoxia. Spener evitou de descrever o fim dos tempos, mas o via como algo certo.2.1. A crítica aos estamentos sociais da épocaUma das primeiras críticas que Spener articula é a crítica aos estamentos da sociedade de seu tempo, em especial aos líderes espirituais das comunidades. Ele compara a comuni-dade como uma árvore, cujas folhas estão doentes pelo fato de suas raízes estarem doentes. Toda e qualquer reforma na igreja precisa começar com os pastores e líderes espirituais das comunidades. Spener critica os colegas pastores fortemente por não se preocuparam com a sua própria vida espiritual, ou seja, não se preocupam em viver no discipulado e em viverem a vida a partir da perspectiva da fé. E quando alguém se empenha por isto, é visto por outros como papista ou sectário. Spener critica a discrepância entre pregação e vida de fé dos pasto-res de seu tempo. Ele faz uso da distinção entre ensino e vida. Embora vislumbre na igreja luterana a igreja com a doutrina correta, ele entende que a vida da mesma está totalmente de-turpada. Há uma pura doutrina e uma vida impura. Aos pregadores falta a fé autêntica. Tomando o Prefácio de Lutero aos Romanos como base, onde Lutero afirma que a fé é algo vivo e operante, Spener exige, acima de tudo, que a fé deva ter como implicação os frutos de uma vida conduzida pelo Espírito Santo. Com seus enfoques, Spener se distinguiu claramente dos Entusiastas de seu tempo, que viam que a vida deturpada era conseqüência de um ensino deturpado. Spener sempre se posicionava no fundamento da doutrina luterana da justificação forense do Livro de Concórdia. Da mesma forma, Spener se distanciou do Donatismo, que afirmava fazia a efetividade do ministério depender diretamente da piedade e santidade da pessoa oficiante. Spener criticou severamente a falta de fé autêntica nas comunidades. Bebedeira, pro-cessos judiciais, negócios ilegais, opressão dos pobres e vida desregrada marcavam, entre ou-tros, a vida do povo eclesiástico. O amor ao próximo não é praticado. Há uma compreensão da efetividade do sacramento ex opere operato. Apesar de articular estas e outras críticas, Spener se distanciou do Espiritualismo místico de seu tempo, que declarou que a igreja era a grande “Babel” e conclamou as pessoas a abandonarem a igreja. Para Spener, a Babel de seu tempo continuava a ser Roma. Contudo, ele via que a igreja luterana ainda não havia saído completamente do seu cativeiro babilônico, como Lutero o havia desejado.2.2. A pobreza de Espírito da igreja e de seus líderesA crítica eclesiástica de Spener é dura e afirma, em especial, que o que impera entre os líderes espirituais de seu tempo é aquilo que ele chama de pobreza de espírito (alem. “Geiste-sarmut”). Esta crítica é partilhada por todos os pais do Pietismo, nas diferentes épocas – assim Franke, Bengel, Oetinger e o Pietismo de Herrnhut, por exemplo. Todos eles criticam – e Spener é o primeiro a erguer a voz de forma mais articulada – um cristianismo nominal e cos-tumeiro praticado pelo povo evangélico. Eles reclamam de uma teologia sem espírito, marca-da unilateralmente pela disputa teológica e por conflitos confessionais, em detrimento dos an-seios reais das comunidades. Spener não desmerece a polêmica e nem o ensino sobre os Pa-pistas, os Reformados, os Anabatistas e os hereges, mas entende que esta não pode ocupar o centro da pregação na igreja. O que importa é que as pessoas sejam auxiliadas e ensinadas a viver no discipulado de Cristo. Por outro lado, Spener também desmascara uma série de interesses que moviam os pastores de seu tempo, como a luta para atuar em igrejas mais ricas, o empenho por obter promoções, bem como por fazer pregações curtas e comer linguicinhas longas nas casas. O principal problema da maioria dos pastores é, segundo Spener, a falta de fé autêntica. Por isto, impera uma grande miséria e uma imensa pobreza espiritual. Falta o agir do Espírito Santo. Embora Spener não fale que é necessário orar em línguas ou algo similar, ele está convicto de que o Espírito Santo age na igreja e que ele pode transformar a vida da igreja. Ele conclama para que as pessoas dêem espaço para o agir do Espírito em seu meio. Ele pensa no Espírito Santo que está ligado com a palavra da Escritura e age por meio desta palavra. Desta forma, somente quando a palavra for distribuída de forma mais ampla, haverá um agir mais amplo do Espírito de Deus. 2.3. A reforma do estudo da teologia, bem como das escolas e universidadesOutro aspecto importante de seu programa de reformas atinge o próprio estudo da teologia. Pois é este que moldou os pastores em uma determinada forma de pensar e trabalhar. Spener exige que o estudo da teologia apresente uma união mais profunda entre o conhecimento e a práxis, afim de que durante os estudos a vida espiritual seja cultivada e fortalecida. Ele exige que em todas as faculdades uma vida acadêmica anti-cristã seja deixada de lado. As faculdades devem tornar-se em oficinas do Espírito Santo. Os professores deveriam ser um exemplo na fé para seus alunos, pois os estudantes aprendem mais pelo exemplo do que pelo ensino. Spener está convicto que a teologia é um hábito prático, i.é, uma postura que conduz para a prática da fé e da vida cristã. “As pessoas vocacionadas para o pastorado devem tornar-se disponíveis e serem encaminhadas para as nossas escolas e universidades, para receberem seu treinamento.” Cada estudante deveria ser ensinado de forma especial nas áreas em que possui dons. As disputas teológicas devem ser conduzidas em língua alemã e, quando desnecessárias, evitadas. As prédicas não deveriam ser no estilo rococó barroco de seu tempo, cheias de floreios e versos poéticos, mas sim, deveriam ser missionárias e pastorais. Elas não devem ser em primeiro lugar esteticamente bonitas, mas devem estar à serviço do fortalecimento da fé. Ele sugere que cada estudante tenha um mentor espiritual, que acompanha o estudante em seus estudos e zela para que faça progressos. Ele sugere que também os estudantes participem dos pequenos conventículos (collegia pietatis) que propõe como modelo de renovação da vida comunitária. Lá eles devem exercitar seus dons e aplic
Mais estudos
Escolha de Líderes - Robson de Carvalho Batismo e Rebatismo - Dr. Claus Schwambach Retrato da Vida - Lodemar Schlemper Refletindo o Amor Generoso de Deus - Gordon MacDonald DESCANSO - Ademar Netto A Caminho da Terra Prometida - Marcos Passig O que estou fazendo com a minha vida!? - Ademar Netto RELIGIÃO é a cocaína do povo - Ricardo Gondim Relacionamentos Interpessoais na Família - Otto G. Stange À procura da chave - Lodemar Schlemper

Nenhum comentário: